quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Primeiro Conto

Sapatos


Estava sem inspiração.
A neblina das primeiras horas da manhã se misturava à fumaça do quarto cigarro consecutivo que ele fumava. Levantou-se, foi até a janela e tentou buscar algo na paisagem, que nem ele mesmo sabia.
Impacientou-se.
Apagou o cigarro no parapeito, esfregou o rosto, despenteou os cabelos e voltou a jogar-se na cadeira pela enésima vez. Não gostava da tinta que revestia as paredes. Verde nunca fora sua cor preferida.
Deve ser por causa dos sapatos, pensou.
Jogados a um canto do quarto, personificavam de forma sutil a presença de seu pai. Recebera ontem, via correios, um pacote com o remetente de sua madrasta. E qual não foi sua surpresa ao rasgar o papel pardo e dar de cara com um par de sapatos gastos que uma breve missiva afirmava ser de velho pai. Touchè! Ele conseguiu desferir o golpe final.
O pai havia falecido há cerca de um mês atrás. Não compareceu ao enterro e rabiscou umas desculpas qualquer a madrasta justificando sua ausência. Não teria sido fácil se tivesse ido. Igualmente não foi fácil não ter ido.
O relacionamento dos dois sempre fora difícil. Não eram questões especificamente pessoais, mas simples oposições que eles não aprenderam a harmonizar. Sendo um homem austero e metódico o pai nunca aceitara a forma tão natural com a qual seguia seus próprios ideais. Não com rebeldia, nem agressividade, apenas fazia o que queria. “Pior que ser perseguido ou contrariado é ser ignorado” retrucava o velho.
Sua apreciação pelas artes não obstante apenas agravava o abismo já existente entre eles. Possivelmente por a mesma quase sempre estar associada a um mundanismo exacerbado. E de certa forma ele não era imune a isso. Seu fascínio agia como uma espécie de alucinógeno em seus sentidos. Perdia-se atrás do que era belo, exótico e peculiar. Também era pintor e quando estava diante de uma tela em branco sentia o mundo só seu, como se cada pincelada que ia acrescentando, de alguma forma desabafasse uma fração de si, algo essencial que produziria ar para o mundo. Para seu mundo. Já o pai nem tentava nem queria entender isso.
Os sapatos lembravam isso.
Mas nem sempre tudo foi assim, houve épocas em que realmente quis fazer diferente. Tentou seguir os ditames e a austeridade. Mas seu espírito em um dado momento se agitou pra sair. A vida que tentou não era sua, ela estava começando a pertencer a alguém que não a queria, mas que apenas a desejava domar. Desistiu então da perfeição, de querer satisfazer e sanar um ferimento que fugia a seus métodos de cura. Seria imperfeito e se permitiria esse prazer.
Agora e até onde quisesse.
Quis expurgar o mal estar de sua consciência que pedia ao menos um meio termo.  Procurou com cuidado um presente que agradasse o pai para selar esse momento. Como sempre se sentira perdido, sendo um homem de posses nada lhe faltava, sendo severo não gostava de nada extravagante e sendo seu progenitor nada o agradava. Escolhera um bonito par de sapatos, de couro caro, mas confortável, discreto, porém elegante.
-O que você quer com isso? - Perguntou.
-Presentear-lhe.
- Você não quer que eu interfira em suas escolhas, mas quer que eu calce seus sapatos.
- Não tive essa intenção, pai.
- Você nunca tem intenção de nada... Talvez esse seja seu problema. – falou de forma distraída dando-lhe as costas.
- Não.
- Não o que?
- Não vou me tentar mais a isso. Acabo de entender que nunca vou conseguir chegar até você, só não sei se é porque você não deixa ou porque você não sabe onde está. Desisto. Se você não quer meus sapatos, então nada mais tenho a fazer aqui.
 Ele levantou-se da cadeira onde estava e começou a sair. Mas não sem notar algo que de repente nunca havia notado: seu pai não existia. Não havia vida em seus olhos. Sua expressão estava dura como sempre, porém refletia vazio. Sem saber como lidar com a descoberta, saiu e não voltou mais.
Agora lá estavam eles, no canto de seu quarto, rotos e quase totalmente gastos. Ainda não havia entendido o que isso significava. Nem sabia se queria entender, simplesmente não se sentia disposto nem corajoso o suficiente para julgar o fato.
Saiu da cadeira e deitou-se, a cama pareceu-lhe mais convidativa que a tela em branco à sua frente. Amanhã, pensou, sentindo o corpo entrando na letargia do sono, nada mais hoje... Amanhã.
Finalmente entrou na quista inconsciência.



Paula Macena